A combatente da esperan�a

Entrevista concedida em abril de 2004

H� 20 anos, a m�dica curitibana Zilda Arns Neumann foi colocada � prova na imin�ncia de encarar o maior desafio de sua vida. Ela capacitava as primeiras l�deres para atuarem pela Pastoral da Crian�a em Florest�polis, interior do Paran�, quando m�dicos da regi�o, incr�dulos quanto ao seu programa inovador de combate � desnutri��o, encaminharam a ela um beb� desidratado. Queriam saber se o tratamento com soro caseiro, proposto pela Pastoral como instrumento b�sico de combate � mortalidade infantil, resolveria aquele caso.

Zilda n�o s� provou que eles estavam enganados quanto � inefici�ncia dos resultados como fincou ali a primeira de muitas bases da Pastoral no pa�s, uma entidade que se fortaleceu com um trabalho de coopera��o, conscientiza��o e valoriza��o do ser humano.      

Duas d�cadas de trabalho lan�aram a Pastoral aos holofotes internacionais. A entidade conta hoje com mais de 240 mil volunt�rios, ganhou dezenas de pr�mios e a m�dica pediatra n�o d� sinais de des�nimo, embora viva um momento d�bio. Enquanto comemora com m�ritos o sucesso, mira um olhar preocupado sobre os rumos da pol�tica econ�mica e os desacertos do governo Lula, que ainda ap�ia. Mas a aprova��o � administra��o federal torna-se menos euf�rica � medida que Zilda Arns, a exemplo de outros cr�ticos, aponta discord�ncias nos atos do PT como governo.

“O Fome Zero n�o deve estar sujeito � pol�tica econ�mica. � hora de mudar esse paradigma. � a pol�tica econ�mica que deve estar sujeita ao combate � fome e � mis�ria”, defende. Ela cita a reforma agr�ria, entre outras a��es, como um meio imediato de inclus�o social e prop�e maior integra��o entre os minist�rios para o combate � pobreza. Fala tamb�m das metas da Pastoral � atender a 10% das crian�as pobres do Brasil a partir desse ano – e sobre a possibilidade de ser agraciada com o Nobel da Paz.

Voc� acredita numa queda brusca da mortalidade infantil no Brasil? O que mais poderia ser feito no �mbito pol�tico e social?

Muitas crian�as ainda morrem de doen�as que poderiam ter sido facilmente prevenidas, como a diarr�ia, as doen�as respirat�rias e perinatais. No entanto, este n�mero tem diminu�do a cada ano no Brasil devido ao esfor�o conjunto de governo, empresas, ONGS e a sociedade civil como um todo.

Nas comunidades acompanhadas pela Pastoral da Crian�a, a mortalidade infantil em 2002 foi de 14 mortes por mil crian�as nascidas vivas, enquanto a m�dia nacional neste mesmo per�odo, segundo dados do IBGE, foi de 29 por mil.  Hoje, as causas de mortalidade infantil n�o s�o as mesmas de 20 anos atr�s. Antes, a desnutri��o estava fortemente ligada � mortalidade infantil no Brasil. Nos �ltimos anos, as principais causas de morte da crian�a est�o relacionadas ao per�odo perinatal. As novas descobertas no campo do desenvolvimento infantil contribuem para a concep��o da crian�a em seu desenvolvimento global. Isto n�o estava t�o claro no passado.

A sociedade, o governo e a Igreja est�o mais sens�veis a iniciativas conjuntas relacionadas ao trabalho social. A colabora��o intersetorial � uma conquista que deve existir em qualquer tempo. Mas � preciso adaptar-se constantemente aos novos problemas, buscando solu��es criativas, simples e que possam ser multiplicadas em grande escala, sem perder a efici�ncia.  

Quais pol�ticas os governos, nas esferas federal, estadual e municipal, poderiam implementar para o crescimento do programa?

Os governos, em suas diversas inst�ncias, precisam combinar a promo��o humana, a reforma agr�ria e outras pol�ticas de estruturas, sem as quais n�o reduziremos as desigualdades sociais. Portanto, � de suma import�ncia que os governos saibam operar a rela��o interministerial, de modo que todos os seus minist�rios estejam plenamente harmonizados na pol�tica de combate � fome e inclus�o social.

Qual a sua avalia��o do Fome Zero? A Pastoral ganha alguma coisa com ele?

O presidente Lula empenhou sua palavra, ao tomar posse, ao dizer que haveria “mudan�as” e que considerava a miss�o de sua vida assegurar a cada brasileiro e brasileira, ao fim de seu mandato, tr�s refei��es por dia. Isso significa que o Fome Zero � prioridade do governo, em parceria com a sociedade civil. Todas as pesquisas de opini�o demonstram que o Fome Zero � o programa mais conhecido e apoiado pela popula��o. Se o pr�prio governo n�o se convencer disso, cometer� um suic�dio pol�tico. O Fome Zero n�o deve estar sujeito � pol�tica econ�mica.

� hora de mudar esse paradigma. � a pol�tica econ�mica que deve estar sujeita ao combate � fome e � mis�ria.H� uma confus�o entre os programas Fome Zero e Bolsa-Fam�lia que cabe ao governo federal elucidar. Um substitui o outro? Um compete com o outro? No meu entendimento, a prioridade do governo � o Fome Zero. O Bolsa-Fam�lia � um programa dentro do Fome Zero, criado para refor��-lo com as pol�ticas de transfer�ncia de renda.

O Fome Zero n�o pode, por�m, ficar restrito ao Bolsa-Fam�lia, ou seja, � transfer�ncia de renda. Isso seria adotar pol�ticas compensat�rias que, a longo prazo, n�o promoveriam a inclus�o social das fam�lias benefici�rias; ao contr�rio, refor�ariam a depend�ncia delas em rela��o �s pol�ticas p�blicas. A Pastoral n�o recebe doa��es do Programa Fome Zero. No entanto, � parceria do programa, instruindo as fam�lias acompanhadas sobre o cadastro para recebimento do Cart�o Bolsa Fam�lia.

A Pastoral acompanha crian�as desde a gesta��o at� os seis anos. N�o h� estudos direcionados aos jovens?

A Pastoral acompanha a crian�a desde a gesta��o at� os 6 anos. Por isso, � preciso desenvolver a��es que fortale�am a fam�lia e a comunidade onde ela vive. Esse trabalho � realizado pelos l�deres comunit�rios volunt�rios que vivem nas pr�prias comunidades onde atuam. Eles tamb�m realizam atividades voltadas para outras faixas et�rias, como, por exemplo, o acompanhamento ao idoso e o Programa de Alfabetiza��o de Jovens e Adultos.

Al�m disso, muitas m�es acompanhadas pela Pastoral da Crian�a s�o muito jovens. A crian�a � semente de paz ou de viol�ncia. Por isso, deve ser cuidada com muito amor e carinho para se tornar um jovem saud�vel, consciente de seus direitos e deveres de cidad�o. A partir da crian�a em seu contexto familiar e comunit�rio, ser� poss�vel construir um mundo de paz e solidariedade crist�.

Apesar do apoio da CNBB, como consegue monitorar a qualidade de um programa que ganhou os rinc�es do pa�s?

Na Visita Domiciliar, os l�deres comunit�rios perguntam � m�e se a crian�a mamou no peito, se foi pesada naquele m�s, se aumentou de peso ou est� desnutrida, entre outros indicadores. Estas informa��es s�o anotadas no Caderno do L�der e repassadas �s Fabs �  Folha de Acompanhamento e Avalia��o Mensal das A��es B�sicas de Sa�de e Educa��o na Comunidade, durante as reuni�es mensais de Avalia��o e Reflex�o. Mais de 30 mil Fabs s�o encaminhadas por m�s � Coordena��o Nacional da Pastoral, em Curitiba, digitalizadas e integradas ao sistema de informa��o da entidade.

A cada trimestre, a Pastoral da Crian�a divulga um relat�rio de todos os indicadores processados, que podem ser consultados no site www.pastoraldacrianca.org.br ou na p�gina da Rebidia � Rede Brasileira de Informa��o e Documenta��o sobre Inf�ncia e Adolesc�ncia, pelo endere�o www.rebidia.org.br, por meio do link Sistema de Informa��o.

Por ser entidade ligada � Igreja Cat�lica, a Pastoral encontra dificuldades em lidar com grupos evang�licos? H� parcerias?

A Pastoral � um servi�o de a��o social da CNBB, que acompanha gestantes e crian�as pobres, independente de cor, ra�a, cren�a religiosa ou pol�tica. Mais de 10% dos volunt�rios da Pastoral da Crian�a s�o de outras religi�es. Destes, a grande maioria � evang�lica. Para se ter id�ia do ecumenismo da entidade, quase metade dos funcion�rios da Coordena��o Nacional, em Curitiba, � evang�lica. A Pastoral est� aberta a realizar parcerias com organiza��es pertencentes a outras religi�es.

Quais as metas para 2004?

A principal meta da Pastoral para 2004 � ampliar a sua abrang�ncia, visando acompanhar, no m�nimo, 10% das crian�as pobres, ou seja, que pertencem a fam�lias cuja renda � de at� 2 sal�rios m�nimos (de acordo com dados do IBGE). Al�m disso, quer fortalecer suas a��es b�sicas de sa�de, nutri��o, educa��o e cidadania nas comunidades j� acompanhadas e continuar a reduzir a desnutri��o e a mortalidade infantil entre as crian�as de 0 a 6 anos.

Em sua opini�o, falta esp�rito de coopera��o � sociedade para saber lidar com princ�pios como �tica e respeito?

As Pequenas Rodas de Conversa (programa da Pastoral) s�o reuni�es onde as pessoas discutem problemas da comunidade, buscando as melhores solu��es, com a colabora��o de todos. Juntamente com as a��es b�sicas de sa�de, nutri��o, educa��o e cidadania, s�o mais um importante instrumento da Pastoral para a constru��o de uma cultura de Paz.

O maior segredo do sucesso da Pastoral � a ajuda de seus milhares de volunt�rios, que trabalham com amor e pelo amor, cuidando da promo��o humana, da m�stica, da fraternidade crist�, das capacita��es, do sistema de informa��o, da valoriza��o das pessoas. Tenho certeza de que seguir este mandamento � nossa luz e nossa for�a na caminhada para que todas as crian�as tenham vida em abund�ncia. Na Pastoral, o protagonista da a��o transformadora, da liberta��o � o pr�prio exclu�do.

Agraciada com mais de uma dezena de pr�mios com seu programa in�dito no mundo, a Pastoral chega com suas t�cnicas a 14 pa�ses de tr�s Continentes. J� n�o � hora de ganhar o Nobel da Paz?

Em 2003, a Pastoral concorreu pela terceira vez consecutiva ao Pr�mio Nobel da Paz. Nestes tr�s anos, contamos com a solidariedade e o apoio de amigos e parceiros de todas as esferas da sociedade, pol�ticos de todos os partidos, membros de todas as religi�es, pessoas de diferentes ra�as e cren�as.

A riqueza da Pastoral, os bons frutos da indica��o da entidade ao Pr�mio Nobel da Paz, est� em agregar for�as t�o diferentes em prol da constru��o de um mundo mais justo e fraterno. Pessoas que acreditam na preven��o da viol�ncia, no cuidado com as nossas crian�as e na constru��o da fraternidade, como geradores da verdadeira paz.

A indica��o � um reconhecimento ao trabalho dos mais de 240 mil volunt�rios da Pastoral, que, todos os anos, salvam milhares de crian�as da morte e da desnutri��o. Com suas a��es di�rias, envolvendo as comunidades, eles est�o semeando a paz, atrav�s do carinho, aten��o e cuidados com as crian�as pobres e seus familiares. Sem d�vida nenhuma, podemos dizer que somos vitoriosos!