Publicada em 2005
O colecionador de histórias cotidianas
O angolano José Eduardo Agualusa é um escritor peregrino, e, como tal, cultua a literatura universal, mas a partir de uma ótica peculiar e regional. Com passagens pelo Rio – onde morou um bom tempo – Nordeste do Brasil, Angola – sua pátria movida a guerra civil – e Portugal, onde reside atualmente, seus textos são o espelho das tradições que permeiam tão distintos ambientes, seja em casos populares ou em personagens especiais criados a partir do imaginário.
Fã de Jorge Amado e Rubem Fonseca, Agualusa esteve no Brasil para o lançamento de seu livro de contos, Manual Prático de Levitação (Gryphus). Entre uns e outros compromissos, concedeu esta entrevista ao repórter.
Em seu livro de contos, você dá um toque de religiosidade em alguns textos. Na sua opinião, isso é peculiar aos escritores de língua portuguesa do Brasil e da África, devido ao misticismo que envolve a história desses povos?
Não creio. No caso do Brasil, a maioria dos escritores, sobretudo entre os mais jovens, é proveniente de grandes cidades, com uma formação mais europeia. Não parecem manter ligações profundas com a cultura popular de matriz africana.
Pense, por exemplo, no Bernardo de Carvalho, na Adriana Lisboa, ou mesmo na Patricia Melo. No caso dos países africanos, esse interesse pela magia, ou pelo imaginário popular, é de fato mais explícito.
Num país como Angola ou Moçambique, o fantástico está por toda a parte. Não há como não ser contaminado por um tal ambiente. Toda a obra de Mia Couto – atravessada pelo lado mágico da realidade. No meu caso, é um pouco diferente. Eu me interesso também por esse lado, e até mais, pelo absurdo do quotidiano. No meu romance “O estranho em Goa” o principal personagem é o diabo, todos os personagens podem ser, ou não, o diabo. Eu acho o diabo a mais extraordinária, e fascinante, criação da literatura universal.
Em uma entrevista a um jornal brasileiro, você considerou feia a literatura do eixo Rio-São Paulo. Por quê?
É falso. Não disse, nem poderia ter dito nunca, um disparate desses. Alguns dos escritores que mais me influenciaram, e que eu mais amo, são precisamente escritores do eixo Rio/São Paulo. É o caso óbvio de Rubem Fonseca. Mas poderia citar muitos mais. O que eu disse é que os escritores paulistas têm quase todos uma formação mais europeia.
São mais portugueses, mais sombrios. Isso não quer dizer que não sejam bons. Há excelentes escritores em São Paulo. Como leitor de Jorge Amado e Rubem Fonseca, seu texto evidencia um tom regionalista não muito usual na literatura moderna, que usa o cenário cosmopolita.
Há espaço para essa tendência num mercado onde os autores usam uma narrativa cada vez mais universal?
Sou muito pouco regionalista na medida até em que os meus livros refletem a minha mais ou menos forçada errância pelo mundo. Mas não concordo contigo. Sempre houve e continua a haver escritores que partem do regional para alcançar o universal, e que fazem imenso sucesso. Basta pensar no escritor mais lido do nosso tempo, Gabriel García Márquez.
Percebe-se que novos livros são adaptados para o cinema, numa retomada da indústria principalmente no Brasil. Nesse contexto, em sua opinião, é o cinema quem pauta hoje os grandes autores?
Nem por sombras. Acho muito bom que exista essa ligação, pode ser excelente tanto para o cinema quanto para a literatura, mas não me parece nada que o cinema condicione o desenvolvimento da literatura. O que existe sim, e isso será um fenômeno novo, são escritores muito marcados pelo cinema, e cuja escrita reflete tal presença. O ritmo mudou, acelerou-se, e isso talvez seja influência do cinema.
Por que só agora, de poucos anos para cá, os autores africanos de língua portuguesa estão conseguindo projeção no Brasil?
Porque o interesse por África aumentou. Por um lado, o Brasil começou finalmente a traçar uma política externa, que passa pela reaproximação com a África. Por outro lado, a maioria dos brasileiros de ascendência africana, uma parcela dos quais vêm ganhando mais influência política, cultural e até econômica, exige essa aproximação, como forma de recuperar a sua dignidade e o seu orgulho.
Finalmente acontece que essa literatura vem alcançando um razoável sucesso na Europa, ganhando uma visibilidade, e uma autoridade, que antes não possuía. Antes, aliás, nem havia literatura a mostrar.