Entrevista concedida em maio de 2001
Na manhã do dia 19 de maio, antes de receber o prêmio Jabuti 2001 de melhor livro de ficção por sua obra de contos “Invenção e Memória”, Lygia Fagundes Telles alternava momentos de alegria e insatisfação. A felicidade transparecia no sorriso de quem via como recompensa o prêmio deste ano, que considera saboroso como uma taça de vinho tinto. A insatisfação estava na alma de escritora, cujas palavras elucidavam a sua visão de um mundo inacabado e doente. “A função do escritor é denunciar as chagas sociais desse planeta”.
Em “Invenção e Memória”, Lygia resgata a menina que foi em suas aventuras no interior, narrada pela mulher madura e cosmopolita em que se transformou. Dissecando sobre literatura e vida com o respaldo de 10 prêmios nacionais conquistados e traduções em outras dezenas de países, a dama das letras confessa que hoje se divide em duas: a social e a solitária, e é chegado o momento da primeira se aposentar. A solitária – mas não amarga, frisa – ficará reclusa em sua “caverna”, lendo mais, apreciando as nuvens, as pessoas, o dia. Com elegância peculiar, Lygia parece querer resgatar a menina de outrora, e não deixá-la apenas nas páginas do excelente Invenção e Memória.
O que é real e imaginário nessa ligação entre invenção e memória no livro?
A memória e a invenção estão misturados. Quando você dá ênfase ao relato de um fato, você sempre acrescenta algo. Logo se torna difícil fazer a distinção, mesmo porque a invenção se torna o sal da memória.
E como foi resgatar as lembranças na criação deste livro?
É uma forma de trabalhar com a ficção. Dá um outro rumo, uma certa aventura dentro da realidade. Lembro uma frase de Aristóteles: As coisas quando são narradas pelo ficcionista não são as coisas que aconteceram, mas que poderiam ter acontecido. Esse pensamento Aristotélico talvez explique a razão do nascimento deste livro.
Você dá um “toque” especial no enredo? Qual o segredo do sucesso?
Esse livro tem bom humor, que é outra salvação. Em geral, as coisas que não tem humor acabam amargas.
Este é o terceiro Jabuti que você ganha. Esperava o prêmio de 2001 com esta obra?
Das outras vezes foram apenas as estatuetas. Desta vez foi um Jabuti mais “chic”. Este ano foi um Jabuti, em termos, mais imponente, porque além da estatueta, tem o prêmio em dinheiro (risos). É um Jabuti “aumentado”.
Você é uma colecionadora de prêmios. Escreve para ganhar prêmios?
Não, nunca pensei em escrever para ganhar prêmios. Os prêmios vieram como consequência, como uma celebração. Porque escrever é um sofrimento. O prêmio é um brinde, um copo de vinho tinto.
E onde busca inspiração?
A inspiração é um mistério. Nunca sabemos de onde ela vem, quando acaba e por que acabou. São falsas mortes. Ela vai e volta com uma força extraordinária. É muito imprevista. Digamos que seja uma libertação do inconsciente, de onde saem os anjos e demõnios juntos. É uma forma de você se destrancar. Através da arte, você consegue não enlouquecer. Se você canaliza suas emoções e a razão na palavra escrita, na tentativa de alcançar o próximo, você estende a este próximo essas palavras e formamos uma ponte. E talvez através da palavra eu tenha conseguido, de certo modo, manter uma certa lucidez (risos). E talvez através desta ponte eu tenha conseguido desviar alguém da loucura.
Neste caso, você se preocupa com o efeito catártico que suas palavras proporcionam no leitor?
No momento em que escrevo, não penso em ajudar o leitor. Eu escrevo pela vocação. Dentro dessa vocação estão os meus compromissos com a desigualdade social, com a natureza humana, com a solidão, com o ser humano e sua busca. De repente, então, eu dou os meus recados. Eu considero o meu trabalho engajado. A função do escritor É denunciar as chagas sociais. Aí está o engajamento do meu trabalho. Mas eu não tenho o poder político e financeiro para curar essas chagas.
Você falou em vocação. Quem seria Lygia caso não fosse escritora, advogada e ter formação em Educação Física?
Fui Procuradora do Estado de São Paulo por 30 anos. Mas não me imagino de jeito nenhum como uma administradora. Eu não sou boa para a prática econômica num país difícil como este. Fui funcionária pública por pressão, porque precisava. Eu queria mesmo, neste 30 anos, ficar lendo Dostoiévski, olhar o mar, as pessoas…
Prefere o romance ou o conto?
Depende das circunstâncias. Eu posso me apaixonar por um conto ou romance. Quando acabei de escrever “Invenção e Memória”, estava muito apaixonada pelo livro.
Qual a sua opinião sobre as bienais no Brasil?
As bienais no Brasil são importantíssimas. É uma forma de divulgar a obra e dizer: “olha, eu estou aqui, este é o meu livro”. A maioria passa indiferente frente aos estandes, e dá uma certa pena pensar que todo aquele trabalho não foi apreciado como deveria ser. É preciso que o público compareça e ame os livros como ama o futebol.
Acredita que o livro vai se tornar uma paixão do brasileiro, como o futebol?
O povo tem paixão pelo jogador de futebol, e também pelo cantor. Uma vez, numa faculdade, eu disse aos alunos que eles não gostavam de escritores, que não se importavam com a gente, que eles gostavam de roqueiros. Então um rapaz levantou-se e disse: Não, dona Lygia, nós gostamos de vocês, é apenas um tímido amor.
Quem é Lygia?
Eu sou essencialmente duas: a social e a solitária. E vejo que a social está se aposentando. A social é a que divulga seu trabalho, e a solitária é a que fica em casa, lendo, escrevendo, apreciando o dia. Agora, vejo que a social está desaparecendo cada vez mais. Estou mais recolhida, com uma certa vontade de me concentrar, ficar reclusa, mas não amarga.
Então chegou a hora de recuperar os 30 anos de advogada que a privaram de “apreciar” a vida?
Sim, chegou a hora de olhar para o cachorro, para um gato… gosto muito dos bichos.
O que lhe falta na vida como escritora?
Nunca me senti realizada como escritora. Meu sentimento em relação à literatura é de insatisfação. Quando o escritor se sente realizado, completo, maravilhado, ele está perdido. Porque o mundo é doente. Infelizmente, a maioria dos escritores se sentem como modelos nas passarelas. Eu realizo um trabalho honesto e o prêmio é uma recompensa a essa busca que o sofrimento da produção nos proporciona. Escrevo para contribuir para o mundo. O que interessa são esses óculos, essa bolsa, meus brincos (opa, estou sem brincos)… O que interessa é a imortalidade de minhas palavras.