Entrevista concedida em abril de 2004
A prosa do paranaense Miguel Sanches Neto é uma prova de que o Sul do país continua um celeiro de talentos literários. Do garoto filho de agricultores ao professor universitário há um elo que permeia sua literatura e que resultou em dois excelentes livros. “A ficção é este jogo de esconder/revelar quem somos e no que os outros – os personagens – são”, brinca, ao passo que, diante de um cenário brasileiro tão carente do hábito da leitura, deixa uma pergunta que incomoda: “Quem forma leitores hoje no Brasil?”.
Imagine hoje, em tempos de tecnologia e de globalização da comunicação cujos templos são representados pelas lan houses, um garoto trocar o micro pela máquina de datilografar. Impossível, diriam alguns. Mas para muitos escritores contemporâneos, o barulho do sobe-e-desce das teclas e do contato com a folha branca, inibida, esperando a tinta marcar-lhe o destino em letras surpresas, ainda é o charme que não sucumbiu diante da paixão de redigir romances. Assim foi com Miguel Sanches Neto em sua infância – e ainda é -, mesmo que não as tome diretamente como amantes na cumplicidade do processo literário.
A ojeriza no 1ºencontro cedeu lugar a um romance ininterrupto desde então. “Queria viver entre máquinas, queria o som das teclas. Hoje, escrevo no computador, mas há máquinas velhas espalhadas pelo escritório, para que eu me sinta de novo naquele útero acolhedor que era a sala de datilografia”, confessa ele.
Sanches Neto ganha seu espaço no mercado. Lançou Chove sobre minha infância – romance em tom confessional que será publicado na Espanha, e Hóspede Secreto, livro de contos que lhe rendeu o prêmio do Concurso Cruz e Sousa, em 2002. Nesta entrevista, ele disseca um pouco sobre seu processo de criação, a vida de escritor e a literatura no Brasil.
Concorda que todo escritor é um pouco confessional em suas obras? Ou seja, muitos dos personagens são os espelhos dos conflitos do escriba. Você também é assim?
A entrada de dados biográficos em uma obra é algo inevitável, mesmo que o ficcionista escreva sobre um assunto distante no tempo e no espaço. A matéria do escritor é sempre ele mesmo, que pode estar explícito no texto ou velado. Não dá para fugir da proximidade do vivido. No romance Chove sobre minha infância (Record, 2000), criei um personagem que leva meu nome, vive minha infância, relaciona-se com as pessoas com quem me relacionei, ou seja, criei um duplo, que não sou eu e sim um outro porque levantado com este barro moldável que é a linguagem. Acredito que toda ficção é sempre uma espécie de autobiografia, mas isto não diminui em nada o grau de ficcionalização, pois, dialeticamente, para nos representarmos de modo profundo temos que nos afastar de nós mesmos. A ficção é este jogo de esconder/revelar quem somos no que os outros – os personagens é são.
Alguns autores se trancam em salas, outros ensaiam o enredo de uma obra inteira durante uma caminhada. Como é o seu processo de criação literária?
Não sei se tenho processo de criação. Brinco dizendo que não sou eu quem escreve meus livros, mas eles é que me escrevem. Convivo longamente com histórias, sem tomar notas, vou criando e recriando o enredo no plano volúvel da memória. Só me decido a escrever quando sei exatamente como será a primeira frase, que me levará ao primeiro capítulo. E na hora que o escrevo, já antevejo o último. Entre um e outro, sou possuído pela narrativa, que me transportará para aquele ponto que minha imaginação determinou. Vou escrevendo sem maiores planos, mas sempre com rapidez, sem reler nada. Sou da família de Julio Cortázar, que acreditava que devemos sempre escrever com a ideia um pouco à frente da palavra. Em um romance, trabalho oito/dez horas por dia, todos os dias, trancado em meu escritório que, intencionalmente, não tem janelas. Assim, vivo dentro da história, uma história que está sempre na dianteira, obrigando-me a digitar rápido para acompanhá-la. No final, depois que o romance me escreveu, pois sou o texto escrito, invertem-se os papéis – eu assumo o poder crítico e vou corrigindo as centenas e centenas de imperfeições. A escrita, para mim, é mais o ato de reescrever.
Como avalia a literatura nacional hoje?
É uma literatura muito variada, com grandes talentos em todos os gêneros. Desde os anos 80, o escritor brasileiro como classe descobriu que pode ter mercado, que o que ele escreve é um produto com valor econômico, e isso fez com que fosse desencadeado um processo de profissionalização. Muitos conseguem sobreviver não propriamente dos direitos autorais, na maioria das vezes ínfimos, mas do entorno: palestras, trabalhos em jornais e em editoras. Isso é muito importante porque estimula a produção e o consumo, e quando se produz muito a possibilidade de se estar escrevendo obras de relevância é maior. Agora, saber se tudo isso tem qualidade é algo impraticável hoje, vamos deixar tal tarefa para os que virão daqui cinquenta anos. Nosso papel é apenas fazer o melhor. E parece que isso nós estamos pelo menos tentando.
É evidente que a adaptação de livros para o cinema ajuda na divulgação do autor, mas certos escritores veem isso como uma desfiguração nas telas da história escrita – nem tudo é cem por cento. Como vê essa relação? Acredita numa tendência crescente nesta parceria?
Quem forma leitores hoje no Brasil? A escola e a universidade perderam o papel formador é se é que um dia elas tiveram este papel. Os cadernos de cultura sofrem um encolhimento contínuo, pois sempre é a primeira área sacrificada quando se tem que fazer economia. A Internet é a vala-comum dos produtos literários falsificados. Então, acredito que só as adaptações podem dar público ao autor brasileiro. Ainda mais para a minha geração, na casa dos 40 anos, que foi formada pelo imaginário cinematográfico e televisivo. Nós somos escritores influenciados pela narrativa por imagens, e nossa linguagem se presta muito para a adaptação. Chove sobre minha infância está com o cineasta paranaense Fernando Severo, que tenta conseguir verbas para rodar o filme. Muitos de meus contos são roteiros para curta-metragem. Acho inevitável este caminho e desejo que esta parceria aumente sim. Haverá coisas boas e coisas ruins, como em tudo que o homem faz. E confesso que não me interessa o filme em si, mas o seu subproduto, a formação do leitor de literatura contemporânea.
Você é um dos autores contemporâneos mais aclamados no Sul do país, um celeiro de talentos literários. No entanto, é um dos poucos desta região que tem acesso ao grande mercado do Sudeste. Ainda há, no segmento cultural, um certo olhar de desdém com os sulistas no eixo Rio-São Paulo? O que falta para reverter esse quadro?
Na República das Letras, o comando fica nas mãos de quem tem maior capacidade de articulação. É natural que cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, que possuem os meios de comunicação de abrangência nacional, consigam veicular como válidos os seus talentos, que não são necessariamente os melhores do país. Este quadro só é quebrado de forma individual, quando surge, por exemplo, um Dalton Trevisan em Curitiba. Daí todos têm que olhar para este ponto do país e reconhecer que aquele deserto de ideias (segundo a visão preconceituosa dos juízes cosmopolitas) produziu um escritor genial. Não sei se é possível mudar esta situação, mas se for será infiltrando grandes talentos regionais no centro econômico do país, para que possam abrir brechas de recepção para a literatura de qualidade que não esteja no umbigo do poder. Um exemplo disso é o crítico Wilson Martins que, sempre escrevendo em jornais do eixo, contribuiu para a afirmação de Dalton Trevisan, Moacyr Scliar, Luiz Antônio de Assis Brasil, Luis Fernando Verissimo, Domingos Pellegrini e do meu próprio trabalho. Sem a leitura crítica de Wilson Martins, a literatura do sul seria menos conhecida do que é hoje.
Você citou o Dalton, que se afasta da mídia por opção – é do time do Sabino e do Fonseca. Não acha que esses talentos deveriam dar as caras para incentivar a leitura num país tão carente disso?
O mistério quanto à vida pessoal também pode ser uma forma de incentivar a leitura, pois o leitor se inquieta diante de um autor avesso à exposição. E em uma literatura exibicionista como a nossa, pois sofremos de cabotinismo crônico, estas fugas dos holofotes têm sentido positivo. Posso dizer que não faz o meu gênero, sou defensor do escritor em contato com os leitores, mas respeito profundamente tal opção e no fundo admiro esta defesa até meio irritadiça da privacidade.
É possível se engajar numa literatura de denúncia social no Brasil? Em outras palavras: escreveria, por exemplo, um livro de ficção tendo o MST como pano de fundo?
É possível sim, mas não para todo mundo. Somente para aqueles que têm vivência com questões sociais. Pois só produzimos literatura honesta quando escrevemos sobre o que amamos ou odiamos, segundo o conselho do velho Hemingway. No meu caso, que venho de uma sociedade rural, de uma família de pequenos agricultores, e que fiz colégio agrícola, o MST não é um tema distante, faz parte da vida das pessoas com que convivi. Tenho amigos que são sem-terra, que vivem em acampamentos. Confesso que já pensei várias vezes em escrever um romance sobre este movimento, não para defender ou recriminar, este papel panfletário é detestável, mas para expressar os dramas humanos. Literatura para mim é uma forma de entender, pela palavra, trajetórias humanas.
Cite uma das histórias de sua infância que mais te marcaram.
Para todo mundo, a infância é o território das paixões. Eu também tive dezenas delas, apaixonei-me pela professora, pelas primas, pela tia, pelas meninas de sala. Mas o que mais me marcou, nesta infância pobre que tive, foi meu contato com a máquina de escrever. Quando entrei pela primeira vez na Escola Bandeirantes de Datilografia, para começar o curso, depois de uma briga com a famlia, quase chorei diante da cena: jovens datilografando, o barulho das teclas, o som musical da campainha no final de cada linha, a professora Marilu, o silêncio e a atividade frenética dos aprendizes. Descobri naquele instante a grande paixão de minha vida. Escrever. Fui um péssimo aluno, passei com nota 6, mas aquele primeiro encontro definiu meu destino. Queria viver entre máquinas, queria o som das teclas. Hoje, escrevo no computador, mas há máquinas velhas espalhadas pelo escritório, para que eu me sinta de novo naquele útero acolhedor que era a sala de datilografia.
Em uma frase, quem é Miguel Sanches?
Essencialmente, um homem por escrito. E por escrever.