Entrevista concedida em outubro de 2003
O senador Roberto Saturnino Braga é um político por experiência, engenheiro por formação, quase-músico por paixão e, aos poucos, um escritor que se entrega sem receios à literatura, o ofício ao qual se dedica em casa, quando não está em Brasília. Nesta entrevista ao Correio do Brasil, Saturnino – autor de três livros – disseca sobre a arte de redigir e revela: está deixando a política pela literatura e quer escrever sobre Vargas.
O encontro foi marcado no Palácio do Catete, palco memorável que marcou a História da política brasileira. A tarde de sexta-feira no Rio teve céu de brigadeiro, o que permitiu um curto passeio pelos jardins. Acompanhado de duas assessoras, o então senador Saturnino Braga caminhou tranquilo pelo bosque com ar de quem cumprira o papel burocrático da semana legislativa em Brasília. Em casa, nos fins de semana, sente-se livre para se embrenhar pela literatura, sua nova paixão, ofício que vai substituir o mandato em breve.
Mesmo assim, não deixa a política de lado. Ri e comenta: “Getúlio costumava passear por aqui todas as tardes, pegava seu charuto e vinha”. Não mero comentário, pareceu mais um exercício prévio da memória pelo fato de planejar um livro sobre o maior estadista brasileiro.
Antes de iniciarmos a entrevista, preocupou-se em procurar nas árvores seculares um canário que cantava. Disse que a vida, como a literatura, tem musicalidade. Lembrou dos tempos em que foi músico, engenheiro e economista, para depois se aventurar pela política e tornar-se prefeito, deputado e senador – já no 3º mandato. Feito isso, restou uma pergunta sobre outro ofício, o que já lhe rendeu dois livros de contos e um romance. (Quarteto, Ed. Record)
Como se iniciou na literatura?
A literatura sempre me acompanhou, desde o tempo em que me dedicava à música. Toda canção é uma poesia musicada. Sempre gostei de ler muito. Na juventude, comecei a fazer os primeiros ensaios escritos. No momento em que ingressei na política, a partir de 1962, o trabalho absorveu o meu tempo. O aspecto que menos gosto na política é que ela torna você unidimensional, você só pensa em política. Isso me desviou profundamente da engenharia, da matemática, da música e das letras. Só depois que deixei a prefeitura do Rio, quando saí machucado com o caso da falência das contas públicas, comecei a escrever meu 1º livro, porque imaginava que tinha terminado ali a minha vida política.
O senhor acredita na literatura como forma de denúncia social?
Acredito como forma de abrir a compreensão do mundo, das relaçõees humanas. A literatura desvenda os meandros dos relacionamentos entre as pessoas, e por conseguinte ela vai aonde a ciência não vai. A literatura vai mais fundo.
Você é um dos poucos autores que associam nas suas obras o cenário político-social com ficção. Tem influência de algum autor ou é mero resultado de sua experiência?
Li bem os autores brasileiros, gosto do Machado de Assis, de Guimarães Rosa, ambos estão no mesmo patamar. Guimarães, aliás, criou uma linguagem literária com o falar do sertanejo, captou aquela musicalidade. Gosto também de autores internacionais, como Dostoiévski. No Brasil, dos contemporâneos, admiro Rubem Fonseca, Rubens Figueiredo e Raduan Nassar.
O Rio de Janeiro é a paisagem predominante em seus livros. Não pensa em escrever tendo outra cidade como cenário?
Já estou escrevendo um outro livro que também se passa no Rio. São contos de uma época em que eu era menino, ou até mesmo de um tempo antes de mim, com histórias contadas pelos meus pais. Morei em Brasília por algum tempo, mas sempre fui do Rio, é difícil escrever sobre outro lugar sem conhecê-lo. Uma coisa que me influenciou muito nesse contexto é a campanha política. Eu entrava nas casas mais modestas, mais humildes. Esse corpo-a-corpo me deu a matéria-prima, levou-me a compreender o outro, a vida deles.
Muitos autores divergem quanto à relação que devem ou não ter com o leitor através de sua literatura, como o efeito catártico que uma obra pode proporcionar. Se preocupa como suas palavras serão interpretadas?
Não, penso mesmo no meu trabalho, confio nas minhas certezas e convicções, e acho que transmito isso ao escrever. E principalmente nesse tipo de convicção de que cada ser humano tem a sua verdade. Não é fácil conhecer a razão do outro, o que ele vai pensar.
Escreveria um livro de memórias políticas?
Sim, mais para frente. Acho que ainda tenho um compromisso com meu lado mais literário. Talvez quando largar a política. Então começarei a rememorá-la. Ainda tenho mais três anos para deixar o Senado.
Vê-se hoje um crescimento do mercado editorial, ao passo que o hábito da leitura, no entanto, ainda não conquistou a grande massa dos brasileiros. Em sua opinião, qual o caminho para se consolidar a literatura?
A cultura brasileira, muito especialmente a carioca, é uma cultura de raiz estética da música e da imagem. Temos competência para fazer últimos filmes, últimos programas de TV, artes plásticas… mas não se criou o hábito da reflexão a partir da leitura. A cultura brasileira está ligada muito à música. O trabalho de leitura exige mais disciplina e concentração.
Falta vontade política? Uma reforma no método de ensino, com um modelo similar ao da França, por exemplo, onde os professores ensinam a gramática trabalhando com obras de grandes literatos?
Acho que sim, isso tem que começar lá “embaixo”, dar mais importância à literatura na escola básica.
Houve uma pausa na entrevista para um papo informal. O restaurante nos jardins do Museu do Catete proporciona um ambiente agradável para isso, apesar de um pagode em alto som vindo da cantina não combinar com o tom da conversa. Saturnino tira do bolso um maço de cigarros e perde o olhar nas árvores. De súbito surge à mesa o nome de Jorge Amado e suas obras adaptadas para o cinema. “Tive um bom convívio pessoal com ele. Gostei muito dos seus livros. Ele foi um inovador nos anos 30 e 40, mas sua linguagem continuou a mesma” rememora o senador, dando o gancho para a continuação da entrevista.
E o senhor, não tem medo de ficar tachado como um escritor que só narra o Rio?
Tenho. Mas meu cenário é mesmo o Rio. Conheço um pouco a vida de Brasília, mas ela ainda não criou personalidade, é nova.
Sonha em ver algum de seus livros adaptados para o cinema ou TV?
Não escrevo para isso não. O meu estilo tem pouco diálogo, muito descritivo, muito de literatura mesmo, pouco adaptável.
E a relação cinema-literatura, como vê isso?
O cinema é uma composição geral. Um dia, tivemos uma discussão no Senado sobre se o filme promove mais a música ou se o inverso, mas é claro que a música ajuda mais.
Como é o seu processo de produção literária?
Em casa. Como estou ainda na política, escrevo às sextas, sábados e domingos. Só escrevo de manhã. Tenho uma certa dose de disciplina. O escritor é aquele que redige todos os dias. No dia em que me “livrar” da política, pretendo fazer isso todos os dias, experimentar, tentar, mesmo que não saia nada.
Falta uma aproximação de escritores com o público para popularizar mais a literatura em um país como o Brasil?
Sim, mas não teria uma fórmula para isso. Já falei na Faculdade de Letras da UFRJ, mas fora disso, a não ser que seja um escritor consagrado, um autor não chama atenção, a literatura não desperta interesse. Antigamente existiam pontos de encontros no Rio, em bares e livrarias. Hoje é difícil encontrar um escritor.
Não está na hora da literatura brasileira dar uma nova guinada, como na Semana de 22?
O que foi aquela semana de 22? Acho que foi um movimento cultural mais abrangente, não só literatura, até ciência discutiu-se. A literatura hoje está desvalorizada. O hábito da leitura tem um efeito sobre a compreensão das coisas. Quando lá, você reflete sobre aquilo, ao contrário de quando apenas se vê, como na TV. Está tudo muito voltado para a televisão. Pelo menos o cinema brasileiro vive uma fase ótima. A música brasileira também está bem reconhecida internacionalmente. Mas ainda falta alguma coisa na literatura.
Cada vez mais as editores encomendam romances temáticos a autores. Isso não está inibindo a independência de produção?
Prejudica sim, e acho que a tendência é essa. A editora obrigatoriamente tem de estar de olho no mercado para cobrir os seus custos. Mas a editora que se preza, organiza seus custos e dá espaço para obras de fato, literárias, que em muitos casos não são obras de mercado.
Está mesmo decidido a trocar a política pela literatura?
Estou. Quero ainda compor um outro romance, recorrendo mais à pesquisa, para o lado político-social. Quero abranger a vida de Getúlio, que foi um grande estadista.
E a ABL? Tem vontade de entrar para o seleto grupo?
Eu não desprezaria isso, mas também não tenho essa preocupação. Não tenho isso como meta.
Saturnino por Saturnino?
Sou um neoclássico. Não procuro inovar na linguagem, procuro desenvolver uma narrativa que tenha o estilo clássico.
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