Leandro Mazzini

based Brasília, BRAZIL ❤️ 🇧🇷

Entrevista concedida em abril de 2004

Há 20 anos, a médica curitibana Zilda Arns Neumann foi colocada à prova na iminência de encarar o maior desafio de sua vida. Ela capacitava as primeiras líderes para atuarem pela Pastoral da Criança em Florestópolis, interior do Paraná, quando médicos da região, incrédulos quanto ao seu programa inovador de combate à desnutrição, encaminharam a ela um bebê desidratado. Queriam saber se o tratamento com soro caseiro, proposto pela Pastoral como instrumento básico de combate à mortalidade infantil, resolveria aquele caso.

Zilda não só provou que eles estavam enganados quanto à suposta ineficiência dos resultados como fincou ali a primeira de muitas bases da Pastoral no país, uma entidade que se fortaleceu com um trabalho de cooperação, conscientização e valorização do ser humano.      

Duas décadas de trabalho lançaram a Pastoral aos holofotes internacionais. A entidade conta hoje com mais de 240 mil voluntários, ganhou dezenas de prêmios e a médica pediatra não dá sinais de desânimo, embora viva um momento dúbio. Enquanto comemora com méritos o sucesso, mira um olhar preocupado sobre os rumos da política econômica e os desacertos do governo Lula, que ainda apoia. Mas a aprovação à administração federal torna-se menos eufórica à medida que Zilda Arns, a exemplo de outros críticos, aponta discordâncias nos atos do PT como governo.

“O Fome Zero não deve estar sujeito à política econômica. É hora de mudar esse paradigma. É a política econômica que deve estar sujeita ao combate à fome e à miséria”, defende. Ela cita a reforma agrária, entre outras ações, como um meio imediato de inclusão social e propõe maior integração entre os ministérios para o combate à pobreza. Fala também das metas da Pastoral – atender a 10% das crianças pobres do Brasil a partir desse ano – e sobre a possibilidade de ser agraciada com o Nobel da Paz.

Você acredita numa queda brusca da mortalidade infantil no Brasil? O que mais poderia ser feito no âmbito político e social?

Muitas crianças ainda morrem de doenças que poderiam ter sido facilmente prevenidas, como a diarreia, as doenças respiratórias e perinatais. No entanto, este número tem diminuído a cada ano no Brasil devido ao esforço conjunto de governo, empresas, ONGS e a sociedade civil como um todo.

Nas comunidades acompanhadas pela Pastoral da Criança, a mortalidade infantil em 2002 foi de 14 mortes por mil crianças nascidas vivas, enquanto a média nacional neste mesmo período, segundo dados do IBGE, foi de 29 por mil.  Hoje, as causas de mortalidade infantil não são as mesmas de 20 anos atrás. Antes, a desnutrição estava fortemente ligada à mortalidade infantil no Brasil. Nos últimos anos, as principais causas de morte da criança estão relacionadas ao período perinatal. As novas descobertas no campo do desenvolvimento infantil contribuem para a concepção da criança em seu desenvolvimento global. Isto não estava tão claro no passado.

A sociedade, o governo e a Igreja estão mais sensíveis a iniciativas conjuntas relacionadas ao trabalho social. A colaboração intersetorial é uma conquista que deve existir em qualquer tempo. Mas é preciso adaptar-se constantemente aos novos problemas, buscando soluções criativas, simples e que possam ser multiplicadas em grande escala, sem perder a eficiência.  

Quais políticas os governos, nas esferas federal, estadual e municipal, poderiam implementar para o crescimento do programa?

Os governos, em suas diversas instâncias, precisam combinar a promoções humana, a reforma agrária e outras políticas de estruturas, sem as quais não reduziremos as desigualdades sociais. Portanto, é de suma importância que os governos saibam operar a relação interministerial, de modo que todos os seus ministérios estejam plenamente harmonizados na política de combate à fome e inclusão social.

Qual a sua avaliação do Fome Zero? A Pastoral ganha alguma coisa com ele?

O presidente Lula empenhou sua palavra, ao tomar posse, ao dizer que haveria “mudanças” e que considerava a missão de sua vida assegurar a cada brasileiro e brasileira, ao fim de seu mandato, trás refeições por dia. Isso significa que o Fome Zero é prioridade do governo, em parceria com a sociedade civil. Todas as pesquisas de opinião demonstram que o Fome Zero é o programa mais conhecido e apoiado pela população. Se o próprio governo não se convencer disso, cometerá um suicídio político. O Fome Zero não deve estar sujeito é política econômica.

É hora de mudar esse paradigma. É a política econômica que deve estar sujeita ao combate à fome e à miséria .Há uma confusão entre os programas Fome Zero e Bolsa-Família que cabe ao governo federal elucidar. Um substitui o outro? Um compete com o outro? No meu entendimento, a prioridade do governo é o Fome Zero. O Bolsa-Família é um programa dentro do Fome Zero, criado para reforçá-lo com as políticas de transferência de renda.

O Fome Zero não pode, porém, ficar restrito ao Bolsa-Família, ou seja, à transferência de renda. Isso seria adotar políticas compensatórias que, a longo prazo, não promoveriam a inclusão social das famílias beneficiárias; ao contrário, reforçariam a dependência delas em relação às políticas públicas. A Pastoral não recebe doações do Programa Fome Zero. No entanto, a parceria do programa, instruindo as famílias acompanhadas sobre o cadastro para recebimento do Cartão Bolsa Família.

A Pastoral acompanha crianças desde a gestação até os seis anos. Não há estudos direcionados aos jovens?

A Pastoral acompanha a criança desde a gestação até os 6 anos. Por isso, é preciso desenvolver ações que fortaleçam a família e a comunidade onde ela vive. Esse trabalho é realizado pelos líderes comunitários voluntários que vivem nas próprias comunidades onde atuam. Eles também realizam atividades voltadas para outras faixas etárias, como, por exemplo, o acompanhamento ao idoso e o Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos.

Além disso, muitas mães acompanhadas pela Pastoral da Criança são muito jovens. A criança é semente de paz ou de violência. Por isso, deve ser cuidada com muito amor e carinho para se tornar um jovem saudável, consciente de seus direitos e deveres de cidadão. A partir da criança em seu contexto familiar e comunitário, será possível construir um mundo de paz e solidariedade cristã.

Apesar do apoio da CNBB, como consegue monitorar a qualidade de um programa que ganhou os rincões do país?

Na Visita Domiciliar, os líderes comunitários perguntam à mãe se a criança mamou no peito, se foi pesada naquele mês, se aumentou de peso ou está desnutrida, entre outros indicadores. Estas informações são anotadas no Caderno do Líder e repassadas às Fabs –  Folha de Acompanhamento e Avaliação Mensal das Ações Básicas de Saúde e Educação na Comunidade, durante as reuniões mensais de Avaliação e Reflexão. Mais de 30 mil Fabs são encaminhadas por mês – Coordenação Nacional da Pastoral, em Curitiba, digitalizadas e integradas ao sistema de informação da entidade.

A cada trimestre, a Pastoral da Criança divulga um relatório de todos os indicadores processados, que podem ser consultados no site www.pastoraldacrianca.org.br ou na página da Rebidia – Rede Brasileira de Informação e Documentação sobre Infância e Adolescência, pelo endereço www.rebidia.org.br, por meio do link Sistema de Informação.

Por ser entidade ligada à Igreja Católica, a Pastoral encontra dificuldades em lidar com grupos evangélicos? Há parcerias?

A Pastoral é um serviço de ação social da CNBB, que acompanha gestantes e crianças pobres, independentemente de cor, raça, crença religiosa ou política. Mais de 10% dos voluntários da Pastoral da Criança são de outras religiões. Destes, a grande maioria é evangélica. Para se ter ideia do ecumenismo da entidade, quase metade dos funcionários da Coordenação Nacional, em Curitiba, é evangélica. A Pastoral está aberta a realizar parcerias com organizações pertencentes a outras religiões.

Quais as metas para 2004?

A principal meta da Pastoral para 2004 é ampliar a sua abrangência, visando acompanhar, no mínimo, 10% das crianças pobres, ou seja, que pertencem a famílias cuja renda é de até 2 salários mínimos (de acordo com dados do IBGE). Além disso, quer fortalecer suas ações básicas de saúde, nutrição, educação e cidadania nas comunidades já acompanhadas e continuar a reduzir a desnutrição e a mortalidade infantil entre as crianças de 0 a 6 anos.

Em sua opinião, falta espírito de cooperação à sociedade para saber lidar com princípios como ética e respeito?

As Pequenas Rodas de Conversa (programa da Pastoral) são reuniões onde as pessoas discutem problemas da comunidade, buscando as melhores soluções, com a colaboração de todos. Juntamente com as ações básicas de saúde, nutrição, educação e cidadania, são mais um importante instrumento da Pastoral para a construção de uma cultura de Paz.

O maior segredo do sucesso da Pastoral é a ajuda de seus milhares de voluntários, que trabalham com amor e pelo amor, cuidando da promoção humana, da mística, da fraternidade cristã, das capacitações, do sistema de informação, da valorização das pessoas. Tenho certeza de que seguir este mandamento é nossa luz e nossa força na caminhada para que todas as crianças tenham vida em abundância. Na Pastoral, o protagonista da ação transformadora, da libertação é o próprio excluído.

Agraciada com mais de uma dezena de prêmios com seu programa inédito no mundo, a Pastoral chega com suas técnicas a 14 países de três Continentes. Já não é hora de ganhar o Nobel da Paz?

Em 2003, a Pastoral concorreu pela terceira vez consecutiva ao Prêmio Nobel da Paz. Nestes três anos, contamos com a solidariedade e o apoio de amigos e parceiros de todas as esferas da sociedade, políticos de todos os partidos, membros de todas as religiões, pessoas de diferentes raças e crenças.

A riqueza da Pastoral, os bons frutos da indicação da entidade ao Prêmio Nobel da Paz, está em agregar forças tão diferentes em prol da construção de um mundo mais justo e fraterno. Pessoas que acreditam na prevenção da violência, no cuidado com as nossas crianças e na construção da fraternidade, como geradores da verdadeira paz.

A indicação é um reconhecimento ao trabalho dos mais de 240 mil voluntários da Pastoral, que, todos os anos, salvam milhares de crianças da morte e da desnutrição. Com suas ações diárias, envolvendo as comunidades, eles estão semeando a paz, através do carinho, atenção e cuidados com as crianças pobres e seus familiares. Sem dúvida nenhuma, podemos dizer que somos vitoriosos!