Divagações particulares sobre meio século de vida
Nasci numa manhã de outubro de 1976. Lembro de algumas histórias das quais fui protagonista na infância e adolescência, com ou sem brilho – não tenho licença para falar de mim mesmo a não ser os outros. Mas abro uma exceção aqui do que me marcou: a minha infância dá um enredo que, se desnecessário para todos, particularmente enche meu currículo de alguns feitos e atitudes ora descabidas, ora necessárias para minha trajetória de homem.
A começar pelo Pré-escolar na Escola Estadual Desembargador Canedo, palco de uma adorável lembrança de estudos e contatos com os primeiros amigos entre 1982 e 1985. E por falar em palco, ainda existe lá, intacto, aquele mesmo em que subi numa noite de quase-Natal para representar. Foi minha primeira e única atuação como ator em peça teatral. No presépio vivo, ao lado do menino Jesus, de santa Maria e outros personagens ilustres, coube-me o papel da vaca, uma surpresa de minha mãe, que confeccionou a fantasia. Não fiz mal, apesar da ironia de uma plateia eufórica. Berrei no momento certo, com aqueles chifres enormes e rabo feitos de arame e pano, para nunca mais voltar àquilo. Fui aplaudido, e decidi, precocemente, que o teatro estaria longe de meus planos.
Foi na mesma escola que conheci muitas pessoas, que me dei por ser humano e consolidei amizades. Alguns anos depois do pré, no primário, estava no sítio de um amigo para uma pelada de futebol quando veio a ideia de uma pesca no açude. Vi algo brilhante no espelho d’água e resolvi checar. Peguei uma pedra, atirei para o alto, desceu em parábola, justamente em cima da carpa que viera à superfície. Em poucos segundos ela boiava. Pela frase que soltei, lembro bem, passei longe de um pescador: caramba, matei um peixe. Não chega a tanto, mas de certa forma foi uma conquista, assim como a primeira vez que pedalei, sozinho, numa bicicleta cross rumo à escola no acostamento de uma BR-116 lotada de caminhões.
Roças e fazendas, açudes e estradas poeirentas circundaram meus caminhos infantis. Em meados de 80, depois de percorrer de carro uns quinze quilômetros de estrada de chão, fui parar em Cachoeira Alegre, um distrito rural, terra natal de minha mãe. Comemorava-se algum feito ou um feriado, bandeiras das cidades, do Estado e do Brasil compunham o cenário melancólico daquele lugar que só tinha uma rua de casas pequenas, igreja e cemitério.
Eu tinha uns seis anos. Nas corridas em busca de algo a fazer, cambaleei e no tropeço derrubei o mastro da bandeira de… Cachoeira Alegre, sustentado apenas por uma latinha cheia de areia. Uma pena, olhares tristes rondaram o local, na cerimônia, em busca do culpado, todos queriam saber quem foi o responsável pelo não aparecimento da bandeira no momento ilustre – o mastro não se sustentara mais após várias tentativas. No dia seguinte, minha mãe ouvia comentários no rádio, uma criança mal-educada e não identificada derrubara o mastro; ela maldizia o moleque que derrubara o orgulho de sua terra natal, a primeira bandeira confeccionada. Eu escutava, calado.
Mas não pude silenciar diante do estrondo causado pela traseira da Ford Caravan do Silvinho na quina de uma parede. Trabalhava numa loja debaixo da casa onde morava, às margens da BR-116. Foi no carro dele que conheci o acelerador, a embreagem e o freio. E, como não poderia ser pior para um iniciante, no mesmo veículo eu troquei as funções, e diante da ordem pisa! Pisa!, eu pisei, errado, e a traseira afundou na parede. Saí correndo, gente passava para ver estragos, o Silvinho, quieto, assumiu a culpa, não tinha nada que botar um moleque no volante de seu carro, acho que pensava assim.
O jornalismo aflorou na juventude, quando conquistei as primeiras boas notas ao fazer dissertações seguidas para os amigos. No último ano no colégio, decidi lançar um jornal pirata e ganhei a antipatia gratuita de professores e da direção. Tomei pau, como ovelha negra da turma. No fim do ano, fui um dos dois entre os 40 alunos a passar no vestibular de uma universidade pública. Seria economista, mas diante do boletim em vermelho, recusaram-me. Bem feito pro colégio, não fizeram propaganda com meu nome. Sorte a minha em não lidar com números num país de crises.
A cada ano que completo olho meu passado com uma ponta de saudosismo diante desses entre outros episódios não tão marcantes, mas em que fui protagonista, e isso basta. Cada um tem sua História, e no vício de escriba, decidi apresentar parte da minha, pouco de uma infância, muito de mim. Deixei de contar tantas outras que guardo no coração, que não caberiam aqui. Divagações particulares sobre a infância de um menino de meio século, como estas, necessariamente não trazem o consolo de reviver bons tempos ou reencontrar pessoas queridas, mas ressuscitam, de alguma forma, a criança, adolescente ou jovem que fui e que ainda posso ser. Olhar para trás para seguir em frente faz falta a muitos de nós. É um exercício de liberdade, da confecção de uma vida.