O soldado João Dias deixou a vila para defender a Pátria no front em meados dos anos 40, numa guerra inventada lá pelas bandas da Europa, mas que mexia com os brios dos governos de cá. Não só se despediu da vila como também de Maristela, a namorada, que jurou se debruçar no parapeito de sua janela à espera de suas cartas diárias. Assim foi o trato da prova de amor. Ele escreveria, e ela as contemplaria desde o envelope deixado pelo carteiro no muro do jardim.
Foi João Dias, ficou Maristela e apareceu na vila por aqueles dias – cujas nuvens sombrias refletiam o temor da perda na alma da mulher apaixonada – um menino que logo encontrou ofício de carteiro. Deram-lhe a bicicleta e o roteiro com as duas ruas. Passava pela primeira, com trinta e duas casas, contornava o logradouro para pedalar pela segunda, com mais vinte e uma residências, todas com seus jardins à espera de notícias ocultas. E retornava pela primeira rua, caminho de volta ao trabalho.
O rapaz passou a entregar as cartas, calado, compenetrado na responsabilidade da labuta, boina na cabeça e corpo curvado no esforço de jogar o peso das pernas no pedal e fazer as rodas ganharem as ruas de pedras, sem quedas, de olho nos preciosos envelopes na cesta à frente do guidão.
O soldado João Dias cumpriu o prometido e escrevia todos os dias para a amada. Ela perdia os olhos nas nuvens vespertinas, mesclando desejo e saudade, medo de perdê-lo e a esperança do retorno. No silêncio que acompanhava suas reflexões, pressentia a chegada do menino, esboçava um sorriso, o via parar, colocar a carta no muro, observá-la por alguns segundos e partir. Contava trinta segundos. Era o tempo de sair do quarto a passos largos, atravessar a sala, ganhar o jardim e tê-la nas mãos. João Dias sentia saudade. Falava dos desafios, da sede e do desejo. Da foto que levara consigo. Poucas linhas, o suficiente para que arrancassem de Maristela umas lágrimas.
Outras lágrimas, inquietas, desciam também dos olhos de Juliana, cuja paixão por João só ela media, sem que as alcoviteiras de janelas soubessem. Mas o menino da bicicleta descobriu, em sua astuta discrição. João Dias também lhe escrevera, uma única vez, para não mais enviá-la notícias. Havia feito a sua escolha, assim dera a entender pelo semblante de Juliana, que como Maristela, também cultivava a ansiedade na espera. Em vão, para ela.
Aos poucos, o menino novato na vila foi conhecendo cada um daqueles moradores pelo semblante, pelo brilho ou a falta dele nos olhos que recebiam as cartas, ora abertas com efusão à sua frente, ora levadas ao peito, ou esquecidas nas caixas de mensagens. Os atos e gestos apresentavam a ele aquelas pessoas, sem que palavras fossem necessárias ou letras fossem lidas para que ele descobrisse o mundo de cada um deles, a vida que tinham e a que sonhavam alcançar.
Meses se passaram, e naquele exercício constante de observação, percebeu o menino da bicicleta que Maristela já não tinha a reconhecida alegria nos olhos, apesar de receber diariamente as cartas. Ele não precisava saber o que nelas vinha para constatar a desilusão em sua face. João se esquecia do amor, da saudade, e transformava-se em soldado de fato. Relatava apenas o front, as homenagens do coronel, quantos homens havia matado em honra de sua Pátria.
O ousado menino da bicicleta passou, então, a soldado em uma batalha particular, sem canhões ou tiros a esmo. Mirou o coração da bela Maristela. Assim, começou a entregar as cartas de João Dias acompanhadas de uma rosa, que ele surrupiava do jardim vizinho ao de sua pretendida – da casa de João. Vez ou outra ela o via furtar a flor pelo gradil, sem se surpreender. Ele andava cinco ou seis passos, parava defronte o muro que os separavam, trocavam olhares quietos. Mas ela, insistente no amor distante, as deixava murchar, levando apenas o envelope no ritual já conhecido.
Uma semana assim, carta e flor no muro, olhares profundos, envelope na mão dela, rosa murcha. Como o caminho de volta era o mesmo, a esperança de um dia não encontrar a rosa no muro cobria os olhos do garoto. E depois de semanas, aconteceu. Ela levou a carta e a flor. E assim ocorreu durante outra semana, até que numa tarde a carta ficou e a rosa enfeitou, junto às outras, o quarto de Maristela. Pouco importava João Dias. Ela entendera o jogo e deixara a senha para que o menino entrasse em sua vida.
É difícil encontrar palavras certas para explicar o que se sucedeu na volta do soldado condecorado. Mas não é impossível quando o amor ajuda. As alcoviteiras trataram de espalhar que João Dias ficou transtornado com a perda do amor. Os velhotes da praça disseram que o soldado mataria o menino como os inimigos da batalha. Os boêmios juraram ouvir do preterido que ele não só acabaria com a vida do garoto, como também o enterraria com sua bicicleta e enfeitaria seu túmulo com as rosas de Maristela. Aliás, sua revolta aumentou quando descobriu que ela se casaria com aquele desconhecido. Mas João Dias foi contido por um imprevisto, diante das incontáveis cartas de amor enviadas por Juliana. E a enxergou, enfim, como mulher.
Assim termina essa pequena história de amor. Maristela se casou com o menino da bicicleta. E João Dias com Juliana, sem rancores ou sentimentos de vingança. Soube-se então que o menino da bicicleta era mudo, e provou naquela vila que o amor, em alguns casos, não precisa de palavras para se concretizar. E as cartas de Juliana foram escritas e enviadas pelo menino, uma artimanha premeditada para amolecer o coração de João Dias e tirá-lo do caminho, um segredo que ficou guardado. Mas não importa mais. Todos estão felizes. Isso basta.
O amor é rosa, há o perigo do espinho.
O amor é carta de linhas mal traçadas, mas sincera.
O amor é envelope com destinatário em branco.
O amor é bicicleta, depende da gente para andar.
O amor é uma criança, que não cresce dentro da gente.